Foi no álbum de estreia da banda noventista Chico Science & Nação Zumbi, que Francisco de Assis França exercia toda a sua futurologia poética ao cantar “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro”.
A letra da canção ainda flerta com um mundo até então impensável para a época, onde “computadores avançam e artistas pegam carona. Cientistas criam o novo e artistas levam a fama”.
O que Chico Science não poderia prever em 1994, ano em que lançou a música “Computadores fazem arte”, é que o debate sobre essa relação artista-arte-máquina sairia do mundo da ficção para se tornar realidade, quase três décadas depois.
O futuro chegou, e com ele, questões bem mais complexas do que tão somente decidir quem merece ganhar os aplausos pela criação de uma obra artística.
Computadores fazem arte?
Na época em que o cantor recifense poetizava sobre o futuro, os computadores não faziam uma arte tão interessante assim.
Na verdade, uma impressão colorida de um desenho qualquer, em baixíssima resolução, ou a edição de uma imagem digital com os arcaicos “programas de computador” da época, já eram suficientes para encher os olhos até dos mais céticos críticos em relação à novidade do momento: o computador pessoal.
Quase três décadas depois, as inteligências artificiais (IA) criam obras de arte exclusivas, que ao tentar se passar por criações humanas, são capazes de enganar até aos mais experientes marchands.
E não para por aí. Hoje a tecnologia IA está inserida nos mais variados segmentos. E para o azar e preocupação dos artistas, esses sistemas são capazes de criar poemas complexos, músicas originais e imagens dos mais variados estilos e padrões.
Mas essas criações, fundamentadas no aprendizado de máquina e em redes neurais artificiais, trazem com elas um novo pepino a ser descascado pela humanidade: a quem pertence os direitos autorais e a propriedade intelectual das obras artísticas criadas por inteligências artificiais?
A arte artificial
Em 2011, uma das revistas literárias mais importantes e antigas dos Estados Unidos publicou um poema intitulado “Para o tôco do pinheiro”, em sua edição especial de outono.
“Você diz: o que o tempo espera de sua primavera? Eu digo: espera pelo galho que floresce, pois tu és diamante arquitetura de doce cheiro, que não sabes porque cresce.”
Essa curta, mas inspirada obra poética, teve sua publicação aceita pela conceituada revista The Archive, da Universidade de Duke, na Carolina do Norte.
No entanto, a poesia logo se tornou o centro de uma grande polêmica, quando os editores da revista descobriram que a obra não era criação de um ser humano, mas de uma inteligência artificial.
Um estudante recém-chegado à Universidade de Duke chamado Zackary Scholl, programou uma rotina que utilizava um sistema gramatical descontextualizado para criar poemas aleatórios.
Após alguns aprimoramentos, Scholl passou a enviar os textos criados por seu programa para sites de poesia. A ideia, segundo ele, era avaliar a recepção dos leitores e editores para “seus” textos.
Théâtre d’Opéra Spatial
Outro caso curioso aconteceu recentemente, nos Estados Unidos. A obra de arte digital “Théâtre d’Opéra Spatial”, do até então desconhecido artista Jason M. Allen, venceu na categoria Arte Digital a premiação da Feira Estadual do Colorado 2022.
No entanto, o que a comissão julgadora do concurso não sabia é que a criação de Allen tinha co-autoria. No caso o Midjourney, um software de inteligência artificial.
O resultado da premiação artística foi alvo de críticas por parte dos outros participantes. Porém, o vencedor afirmou que não desrespeitou nenhuma regra do concurso, inclusive tendo assinado a arte como “Jason M. Allen by Midjourney”.
Muitas outras polêmicas envolvendo o tema foram registradas nos últimos anos, fornecendo provas claras de que, muito em breve, esses casos estarão estreando nos palcos da justiça.
O que diz a lei?
De acordo com a lei 9.610 de 1998, que atualizou a legislação sobre direitos autorais no Brasil, em seu artigo sétimo é dito que “são obras intelectuais protegidas, as criações do espírito”.
O artigo 11 da mesma lei ainda diz que “Autor” é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica. Porém, o mesmo artigo informa que “a proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas”.
Resumindo: a princípio, apenas um ser humano pode ser autor de uma obra artística, e só ele, ou uma pessoa jurídica, podem ser detentoras de seus direitos autorais e morais.
No entanto, as inteligências artificiais capazes de criar de forma autônoma obras de arte são uma novidade na sociedade e, precisamente por isso, ainda não há uma legislação para lidar com essas criações que não são “do espírito”.
Direito autoral e inteligência artificial
A reportagem do portal Bolha Crypto conversou sobre esse assunto com Caroline Nunes, advogada, mestre em Direito do Entretenimento pela University of Southern California e uma das principais especialistas no Brasil em propriedade intelectual na Web3.
Caroline também é a fundadora e CEO da InspireIP, uma plataforma de propriedade intelectual que utiliza a tecnologia Blockchain para facilitar o registro de marcas, direitos autorais e patentes no Brasil.
De acordo com Caroline, essa questão das IAs é nova e realmente divide opiniões.
“Se formos pegar a letra fria da lei, não seria possível que uma inteligência artificial fosse considerada autora ou detentora dos direitos autorais de uma obra.”
Nesse sentido, segundo a especialista, a justiça poderá trabalhar com três possibilidades de entendimento, a partir da interpretação do processo criativo que levou à execução da obra.
“Uma das alternativas é a obra criada por inteligência artificial ser considerada de domínio público. Mas os direitos autorais sobre a obra também podem ser creditados a quem imputou as informações para a criação dessa obra por uma inteligência artificial.”
“Uma terceira possibilidade é a empresa detentora do software de inteligência artificial ter os direitos patrimoniais das obras criadas em sua plataforma.”
Músicas criadas por inteligência artificial
Para Caroline, a questão da titularidade sobre músicas criadas por IA passa por essa mesma lógica.
“Tudo depende de como se enxerga o processo criativo. Se o juiz entender que esse processo veio de uma pessoa física, então é provável que a titularidade dessa música seja de uma pessoa, mesmo ela tendo usado inteligência artificial para fazer isso.”
No futuro, em um cenário hipotético (e quem sabe, distópico) onde as IAs fossem “pessoas físicas” e entes da sociedade, como ficaria essa questão dos direitos autorais?
“No futuro, deve haver regramentos próprios para a inteligência artificial, porque é muito difícil enquadrar essa tecnologia com as regras que existem hoje.”
Um macaco chamado Naruto
A advogada mencionou um caso emblemático em que se buscava saber quem tinha o direito autoral sobre uma fotografia tirada por um macaco. Nesse caso, a decisão foi de que o macaco chamado “Naruto” não poderia ser o autor da obra por não ser uma pessoa física.
“Eu acredito que a questão da inteligência artificial deve seguir os mesmo princípios do que foi decidido no caso do macaco Naruto”, concluiu Caroline Nunes.
Assim, com o assunto explodindo em popularidade nos últimos dias por conta do lançamento de várias plataformas de criação de arte digital, haverá muito para se debater sobre esse assunto nos próximos meses, anos e décadas.